Escrito na época da ditadura, expressa em versos a conversa de um preso político com seu filho diante dele:
Homem preso que olha para seu filho
(Mario Benedetti – tradução livre por Lucas Bronzatto)
Quando eu era como você me ensinaram meus pais
e também as professoras bondosas e míopes
que liberdade ou morte era uma redundância
quem podia imaginar em um país
onde os presidentes andavam sem capangas
que a pátria ou a tumba era outro pleonasmo
já que a pátria funcionava bem
nos estádios e nos pastoreios
realmente meu filho eles não sabiam nada
pobrezinhos acreditavam que liberdade
era só uma palavra aguda
que morte era palavra grave
e cárceres por sorte uma palavra esdrúxula
esqueciam de por o acento no homem
a culpa não era exatamente deles
mas sim de outros mais duros e sinistros
e estes sim
como nos espetaram
na limpa república verbal
como idealizaram
a vidinha de vacas e estancieiros
e como nos venderam um exército
que tomava seu mate nos quartéis
a gente nem sempre faz o quer
a gente nem sempre pode
por isso estou aqui
olhando pra você e sentindo sua falta
por isso é que não posso te despentear o cabelo
nem te ajudar com a tabuada do nove
nem te golear numa pelada
você já sabe que tive que escolher outras brincadeiras
e que brinquei todas elas de verdade
e brinquei por exemplo de polícia e ladrão
e os ladrões eram policiais
e brinquei por exemplo de esconde-esconde
e se te descobriam te matavam
e brinquei de pega-pega
e escorria sangue de quem era pego
meu filho ainda que tenha poucos anos
acho que tenho que te dizer a verdade
para que não a esqueça
por isso não te escondo que me deram choques
que quase me arrebentam os rins
todas essas chagas inchaços e feridas
que seus olhos redondos
olham hipnotizados
são duríssimos golpes
são botas na cara
muita dor para que te esconda
muito suplício para eu apagar
mas também é bom que saiba
que teu pai calou
ou xingou como um louco
que é uma linda forma de calar
que teu pai esqueceu todos os números
(por isso não poderia te ajudar nas tabuadas)
e portanto todos os telefones
e as ruas e a cor dos olhos
e os cabelos e as cicatrizes
e em qual esquina
em que bar
que parada
que casa
e lembrar de você
da tua carinha
me ajudava a calar
uma coisa é morrer de dor
e outra coisa é morrer de vergonha
por isso agora
você pode me perguntar
e mais que tudo
eu posso responder
a gente nem sempre faz o que quer
mas tem o direito de não fazer
o que não quer
chore apenas meu filho
é mentira
que os homens não choram
aqui choramos todos
gritamos berramos assoamos esperneamos
porque é melhor chorar que trair
porque é melhor chorar que se trair
chore
mas não esqueça
--
Audio de Mario Benedetti declamando: http://www.youtube.com/watch?v=oAKUxN-LCZw
--
Há três anos falecia don Mario, fica aqui esta homenagem..
Que seja também um grito para se juntar ao coro dos outros gritos pela abertura dos arquivos da nossa ditadura, por Comissão da Verdade de verdade.
Basta de impunidade!
¡Ni olvido ni perdón!
Link interessante sobre o tema: www.torturanuncamais-sp.org/
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