quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Curriculum Verax


Curriculum Verax
(Lucas Bronzatto)

Eu é um outro (Rimbaud)

Desculpe não ter anexado uma foto
é que às vezes a gente vê mais com a imaginação
do que com os olhos
Meu rosto é comum
barba óculos cabelo curto nariz de batata olhos atentos

Tenho os sentidos aguçados
bastante permeáveis ao sofrimento do mundo
Vivo levando para o travesseiro dores que não são minhas
poemas que não chego a escrever

Ficarei muito feliz se puder trabalhar de chinelo
bermuda de surfista e camisa de time de futebol
ou qualquer outra roupa que não precise passar

Esse diploma de farmacêutico que vai anexo
conferiu-me um grau enorme de indignação
com a indústria farmacêutica e suas táticas de colonização
Resisto a uma dipirona como criança a um xarope

Minhas melhores referências não virão dos patrões
sempre acabo deixando transparecer
a indigestão que engolir hierarquias me causa
Como referências bibliográficas
cito os livros que ainda não li
e algumas tirinhas da Mafalda protagonizadas pelo Felipe

Da infância ligada no videogame
carrego essa ideia estúpida de invulnerabilidade
traduzida em convenientes anestesias na vida adulta
mas carrego também a capacidade de enxergar um continue
sempre depois de qualquer game over

Passei da fase de viver jogando
por isso não conte comigo para jogos de poder
Ambição e orgulho não foram salpicados na minha argila
Mas se ainda assim quiser jogar, te alerto de antemão
que sentirá primeiro aquela raiva infantil
que a indiferença causa nos adultos
depois colocará um chapéu de burro no meu peão
e me deixará rodadas e rodadas sem jogar
Ah, em jogos desse tipo meu peão é o branco
está sempre do lado dos outros peões
e leva dentro meus sonhos vermelhos
bem maiores que qualquer mesquinharia

Você talvez dirá que sendo assim
caminho rumo a lugar nenhum
e é exatamente lá que eu quero chegar
Se as pessoas fascinantes que conheci que são assim
e as que ainda não conheci
também têm como destino esse lugar chamado nenhum
quando chegarmos todos lá
vamos colocar na entrada uma placa
feita à mão com as palavras
bem vindo a um lugar onde gente é tratada como gente
vamos hastear nossas bandeiras
e construir no meio das árvores casas feitas de sonhos
tornados realidade

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Mais um produto das oficinas literárias do Tantas Letras!  A proposta: escrever um poema com as coisas que ficam de fora de um currículo, inspirado pelo excelente poema de Wislawa Szymborska, Escrevendo um Currículo: http://naianaalberti.blogspot.com.br/2011/10/escrevendo-um-curriculo-wislawa.html

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Em outubro, O Outros Cantos Tortos fez um ano!! Agradeço a todos pelo apoio, comentários e recepção aos poemas! Tem sido uma experiência bem legal compartilhar os poemas aqui, publicamente. Seguimos de pé, cantando.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Por que ainda cantamos?

Direto do túnel do tempo, um dos primeiros poemas que escrevi, há uns 4 anos atrás talvez. Por essa época começou o encanto com a poesia de Mario Benedetti e foi baseado em seu poema "Por qué cantamos" que me aventurei em fazer meu primeiro poema crítico. Mudei algumas poucas coisas pra ficar melhor a leitura, mas a essência é a mesma. Aí vai:

Por que ainda cantamos?
(Lucas Bronzatto)

Usted preguntará
por qué cantamos?
(Mario Benedetti)

Se cada um é cada vez mais um
se somar virou subtrair e dividir, multiplicar
se poucos sabem o verdadeiro resultado
da mais simples das contas, um mais um
você perguntará
por que cantamos?

Se nos foi arrancada a essência humana inventiva e crítica
se nos roubam pouco a pouco a capacidade de pensar e sentir
se transformam em impotência nosso potencial humano
se nos amarraram sentados na platéia do palco da História
você perguntará
por que cantamos?

Se quase todas as antenas e quase todos os sinais
não têm nenhum interesse em propagar nosso canto
se a variação da bolsa define valores de notícias e canções
se notícias e canções viraram shows de business sem conteúdo
você perguntará
por que cantamos?

Se a maior parte das cabeças da “elite intelectual” brasileira
é dominada pela elite econômica e não tem ouvidos para o nosso canto
se a universidade tem tantos muros tantas grades tantos abismos
se direitos e coletivo parecem palavras de um idioma incompreensível
você perguntará
por que cantamos?

Si cada hora viene con su muerte
si el tiempo es una cueva de ladrones
los aires ya no son los buenos aires
la vida es nada más que un blanco móvil
usted preguntará
por qué cantamos?

Se estamos desaprendendo a conjugar o verbo amar
se para o amor estamos cansados e usamos cronômetro
se o amor ao próximo tem dia hora local e freqüência semanal
se o rosto do próximo é apenas um retrato falado
você perguntará
por que cantamos?

Cantamos porque vemos o invisível
sentimos onde parece não haver o que sentir
cantamos para dividir o indivisível
cantamos porque assim não é possível

Cantamos pelo que nos é inato de verdade
cantamos para que o canto arranque de nós o consumismo
o individualismo o pessimismo o machismo o capitalismo
e os demais ismos doentios

Cantamos para que a saúde não gere mais doença
para que as doenças deixem de ser minas de ouro
cantamos pela educação que liberta
cantamos para que todos tenham direito de cantar

Cantamos para um dia colocar um nosso na palavra país
e um nossa na palavra América
cantamos para lembrar que nos separamos da mãe-terra
e para fazer coro aos apelos que ela faz para voltarmos

Cantamos para acusar aos responsáveis pela injustiça
cantamos pelos movimentos sociais contra os massacres e cassetetes
cantamos porque nos organizando podemos desorganizar*
e porque o canto pode ser uma fagulha

Cantamos porque el niño y porque todo
y porque algún futuro y porque el pueblo
cantamos porque los sobrevivientes
y nuestros muertos quieren que cantemos

Cantamos porque el grito no es bastante
y no es bastante el llanto ni la bronca
cantamos porque creemos en la gente
y porque venceremos la derrota

Cantamos para resgatar a harmonia das canções
dos que cantaram antes de nós
cantamos porque o canto nos mantém de pé na luta
cantamos para fazer do impossível possível**

--

Trechos em espanhol: Por qué cantamos – Mario Benedetti
* adaptado de Chico Science – Da Lama ao Caos
** trecho de “Fidel Castro – Revolución es”


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E a original, do mestre:


Por qué cantamos

Si cada hora viene con su muerte

si el tiempo es una cueva de ladrones

los aires ya no son los buenos aires

la vida es nada más que un blanco móvil


usted preguntará por qué cantamos


si nuestros bravos quedan sin abrazo

la patria se nos muere de tristeza

y el corazón del hombre se hace añicos

antes aún que explote la vergüenza


usted preguntará por qué cantamos


si estamos lejos como un horizonte

si allá quedaron árboles y cielo

si cada noche es siempre alguna ausencia

y cada despertar un desencuentro


usted preguntará por que cantamos


cantamos por qué el río está sonando

y cuando suena el río / suena el río

cantamos porque el cruel no tiene nombre

y en cambio tiene nombre su destino


cantamos por el niño y porque todo

y porque algún futuro y porque el pueblo

cantamos porque los sobrevivientes

y nuestros muertos quieren que cantemos


cantamos porque el grito no es bastante

y no es bastante el llanto ni la bronca

cantamos porque creemos en la gente

y porque venceremos la derrota


cantamos porque el sol nos reconoce
y porque el campo huele a primavera

y porque en este tallo en aquel fruto

cada pregunta tiene su respuesta


cantamos porque llueve sobre el surco

y somos militantes de la vida

y porque no podemos ni queremos

dejar que la canción se haga ceniza

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domingo, 7 de outubro de 2012

Redes

Um dos problemas (ou soluções?) de não colocar ponto final nos poemas é que eles nunca acabam! Como exercício do Tantas Letras, readequei o poema Murais de concreto (último post) em outro formato e acrescentei novos "personagens". Achei que se encaixou melhor nesse formato, mais próximo da prosa! Rebatizei ele como "Polaroid e Android". Vejam aí:



Polaroid e Android
(Lucas Bronzatto)


1. Segundo estudos, o Brasil é o 5º país mais conectado à internet do mundo. O percentual de brasileiros conectados aumentou de 27% para 48% de 2007 para 2011. As redes sociais contribuíram bastante para este aumento. Deste total, 38% entram na web diariamente e 87% semanalmente.

2. Luis Alberto não sabe ao certo a data de aniversário dos amigos que fez nos últimos anos. Sem lembretes virtuais não liga nem manda sua mensagem pré-fabricada, levemente personalizada. Mesmo gastando menos de meio minuto com as felicitações, não são todos os seus amigos que recebem seus calorosos cumprimentos. Alguns lembretes ele finge que não vê.

3. Sempre que chega em algum lugar diferente, Ana Paula Almeida tira foto. Faz check-in e publica logo de cara o que o olho viu apenas de relance. Fica tão preocupada se os outros vão curtir que não curte.

4. A palavra androide serve para designar qualquer ser que tenha a forma de um homem. Entretanto, por seu uso em várias obras de ficção científica, o termo passou a ser usado mais especificamente para descrever robôs com aparência humana. Como todo robô, os androides dependem de softwares para funcionarem. Android é o nome de um sistema de telefone celular que entre outras coisas permite a um ser humano estar conectado 24 horas à internet e entre outras coisas criou os Android-es, robôs de aparência humana que dependem de softwares para funcionarem.

5. Carlos Machado acha mais fácil saber da vida dos amigos pelas fotos do que perguntar. Além disso, não cumprimenta todos seus amigos virtuais quando os encontra no mundo real.

6. A leitura sempre foi o grande prazer de Michele Souza, mas desde que conheceu as redes sociais, tem utilizado todo seu tempo livre navegando na internet. Aos poucos foi perdendo o hábito de ler. A última parte que leu do último livro que não terminou foi a quinta frase da página 52.

7. Marília Nunes compartilha tudo com seus amigos. Compartilha mais e mais posts a cada dia que passa e menos e menos momentos reais a cada noite que perde.

8. Entre os 10% mais pobres da população brasileira apenas 0,6% tem acesso à Internet e entre os 10% mais ricos, 56,3% acessam a web. 13,3% dos negros usam a Internet e entre os brancos o percentual de uso é de 28,3%. Nas Regiões Sul e Sudeste a porcentagem da população que utiliza internet é de 25,6% e 26,6%, respectivamente e nas Regiões Norte e Nordeste 12% e 11,9%, respectivamente.

9. De 5 em 5 minutos Paulo Soares olha se tem alguma atualização nas suas redes sociais. Quando perguntado sobre o impacto disso em seu cotidiano, responde que quando quiser parar, ele para.

10. “Membro Fantasma” é um fenômeno que ocorre em algumas pessoas que sofreram amputação em algum membro do corpo. Sentem o membro perdido como se ainda estivesse ali, sentindo às vezes dores e sensações anormais.

11. Toda vez que Marcelo de Freitas esquece seu celular em casa, sente o telefone vibrando em seu bolso várias vezes ao dia e se apressa em olhar para conferir se é alguma mensagem importante. Mas o celular não está.

12. João Dias nunca fez piquete nem passeata nem ocupação mas compartilha muitas fotos e frases de luta. Sem sair do quarto faz história, é revolucionário de cadeira giratória.

13. Milton Santos foi um importante geógrafo brasileiro bastante crítico aos impactos nefastos da globalização nos países pobres. Falecido em 2001, previa que as novas formas de comunicação e difusão de informações seriam um grande instrumento para auxiliar nas transformações sociais do mundo nos próximos anos. Um auxílio virtual para as ações que aconteceriam no mundo real.

14. Sarau Solitário de Mural Virtual é o nome que Carla Faria dá à sua mania de declamar com os dedos trechos de poemas e músicas que tenham a ver com o que sente. Quase ninguém lê. Sempre diz que nasceu no tempo errado, lamentando que hoje em dia não existem mais saraus literários. Carla mora em São Paulo, capital.

15. Uma pichação em muro de uma grande cidade diz “estou farto dessa hipocrisia onde todo mundo é bonito, honesto, pensa nos outros, gosta de crianças, gosta de animais e cuida do meio ambiente”. E todo mundo que lê fica sem saber se o autor se refere a alguma rede social ou ao horário eleitoral.

16. O espetáculo da exposição tem mais público que estádio de futebol em final de campeonato. Status muito curtido é o que dá status.

17. Felipe Silva fica online todos os dias mas demora dias para responder e-mails, principalmente os que perguntam como vai.

18. Tanta gente preocupada em atualizar seus status e o status quo imóvel na linha do tempo.

19. “No que você está pensando?”

20. Quem você pensa que é?

21. Todos os dias o desenhista argentino Ricardo Liniers publica uma tirinha (ou um chiste como costuma chamar) em sua página na internet. De humor inteligente e grande sensibilidade, as tirinhas da série Macanudo são bastante compartilhadas nas redes sociais. Uma delas é uma conversa entre três pinguins e um deles diz para os outros dois: - “Não vão se esquecer de viver hein? Só isso que queria dizer, até mais”.

22. De repente me bateu uma saudade de prender foto com tachinha.