domingo, 11 de dezembro de 2011

O Acrobata do Semáforo

O acrobata do semáforo
(Lucas Bronzatto)

eu sou o acrobata do semáforo
e do banco da frente você finge que não me vê.
dou discretas batidas em seu vidro
e você se contorce, agarrando-se a um cinto
que te livra do mal e te salva sempre que você freia
bruscamente qualquer início qualquer indício de culpa 
e responsabilidade pelo que vê.
deixo para os segundos finais do meu espetáculo,
para que leve embora, meu rosto
triste, miúdo de quem teve
qualquer lugar para chegar arrancado do caminho.
leve-o para onde deve ir. seu desejo de comprar
aquele fogão com acendedor automático
aparentemente queima meus olhos suplicantes
e meu grand finale não afeta seu trajeto.
apenas te vejo partir, acelerando        
provavelmente em direção às gotas
de seu calmante químico e sua nova tela
de cristal líquido, que liquefazem seus dias
e te deixam com essa estúpida sensação
de que sem pílulas e produtos perecíveis
você talvez corte os pulsos
cuidando para não sujar o estofado novo.
eu sou o acrobata do semáforo e do seu cômodo sofá
você não me vê mais. respiro agora o ar
que está fora deste chassi quase blindado
que nos separa. faço minhas acrobacias
no seu vazio interno, aquele que você não quer ver
e que os donos de caixas eletrônicos
e de empresas de nomes estrangeiros e alfanuméricos,
publicitários e jornalistas comprados
não querem que você veja.
sou parte desse enigma, dessa esfinge
que silenciosamente atormenta sua paz fictícia.
fictícia, diga comigo: fictícia. 

Em setembro de 2011, no Tantas Letras, recebemos a visita do poeta Carlos Augusto Lima (http://memoriaeprojeto.wordpress.com/), que entre outras grandes contribuições, nos deixou com a tarefa de escrever um poema inspirado em um dos poemas de seu livro "Manual de Acrobacias". Escrever o nosso próprio acrobata. No blog dele tem os vários acrobatas que já foram refeitos, espontaneamente pelos seus amigos, ou sugerido por ele, como é o nosso caso. Esse é o meu, versão final até agora, reformulado com sugestões nas oficinas do Tantas Letras e no Zé Lapada. A inspiração veio desse:

eu sou o acrobata do banco de trás
e só você me vê. vou deixar as
duas mãos no vidro e me contorcer
amarrado a este cinto que me livra
do mal, toda sorte ruim, acaso,
quebranto e freadas bruscas. estes
os segundos finais do grande espetáculo, 
até você ir embora, arrancando
com vagar o seu rosto triste, miúdo
como se quisesse chegar a nenhum lugar.
aonde deve ir. os acendedores do fogão
pifaram e estamos sem fósforo. não
tomaremos calmantes naturais, mas ex-
plodiremos com discreta naturalidade.
vou deixar os vidros abertos na esperança
de oxigenar o mundo e para que alguém
me corte os pés e o estofamento novo.
eu sou o acrobata do banco de trás
e você não me vê. o mesmo ar que
respiro não é o seu, pois estamos
separados. entre um passo e outro, uma
espera na fila do caixa eletrônico
com seus enigmas, senhas alfanuméricas,
nossa esfinge possível, um abismo.
um abismo. diga comigo: um abismo.

(Carlos Augusto Lima) 

domingo, 27 de novembro de 2011

De passagem



De passagem
(Lucas Bronzatto)

Assim que se foi daqui, camarada
pra cá eu vim
trazido pela mesma utopia que nos une

Hoje ao te rever aqui,
de passeio pela metrópole
Também me revejo

Passeio por mim

Me alegro ao ver
que daqui só te restaram as raízes
Perdeu seu tronco de casca dura
seus galhos retorcidos
suas folhas e frutos cinzas
sem flores

Me entristece descobrir
arbustos dispnéicos
crescendo como bosques urbanos
nas minhas mãos
Galhos secos
brotando do meu tronco
tão longe das minhas raízes

Tua serenidade
me leva a crer que
o caos daqui te causava dano
Perturbava essa tua paz de hoje
Que os postes, faróis,
neons e pisca-piscas
ofuscavam tua luz
E que as placas, vitrines,
grafites e manchetes
te confundiam mais do que pensava
E hoje é a mim
que causam dano
ofuscam
confundem
perturbam
essa minha paz de antes

Os arranha-céus e a poluição
são muros bem concretos
que não me deixam ver o mundo
fora da metrópole
Rodoviárias, internet e galerias
são janelas
que preservam outros horizontes
As multidões, avenidas,
o trânsito e a pressa
aumentam as distâncias
entre os de nós
que estamos aqui, camarada
E sozinhos,
como motoboys
na hora do Rush
tentamos fugir do itinerário óbvio
que leva ao estresse e à depressão
Mas até nossa fuga é solitária
O GPS aponta
a dificuldade de se encontrar
nessa imensidão
Nessa imensidão
perdi a beleza das pequenas coisas, camarada
e reencontrei em nossas conversas
o mundo sem muros
as pessoas mais próximas
os itinerários não-óbvios
sem trajetos pré-definidos

Te respeito ainda mais, camarada
Ter idéias comunistas
neste buraco-negro consumista
é valoroso
Manter vivos seus valores
nessa enchente de egoísmo
que alaga as marginais
(e até os marginais)
me motiva a pensar
- Não, não Lucas,
não deixe a metrópole te engolir
não deixe seus valores na sarjeta
Você está só de passagem
sua ida tem volta
Mas por favor,
não demore tanto assim

domingo, 20 de novembro de 2011

Drummondiando...

Cidadezinha qualquer II
(Lucas Bronzatto)

Na rua alguém fala espanhol ao telefone
Diversas livrarias
livros do mundo todo
Museus aos montes
Pessoas interessantes povoam
bares suficientes para encher
fins de semana de uma vida inteira
quase sem enjoar
Happy hours para horas
e horas e horas e horas
Toda a amada América Latina
a um gole de distância
a uma garfada
uma olhada

Eta saudade da minha vida besta, meu Deus

--

A inspiração veio de Carlos Drummond de Andrade:

http://www.horizonte.unam.mx/brasil/drumm6.html

domingo, 6 de novembro de 2011

Poema de notícias de jornal


Poema de notícias de jornal
(Lucas Bronzatto)

Mundo nunca foi tão pacífico
diz cientista estadunidense;
A raça humana nunca foi tão pouco violenta;
Ataques terroristas e guerras civis
são meros soluços estatísticos
numa paz impensável para nossos ancestrais
que tantos genocídios viveram

Caminhamos para a evolução
espiritual global da humanidade
Caminhamos para a Paz,
dizem espiritualistas dogmáticos

A economia pacifica
afirma o economista
O comércio global impede
guerras por riquezas
Trabalho e dinheiro sufocam
inatos instintos assassinos

Mas Maria,
que não é cientista
nem estadunidense,
só é sabida
da ciência da vida
se levanta às quatro e meia
como todo dia
pela condução
pela condição

Maria,
que não é espiritualista
nem sabe ler
e mesmo que soubesse
não conseguiria entender
nem imaginar
camadas e corpos energéticos
evoluindo e envolvendo seu corpo quase idoso
saco de pancadas de seu esposo
Maria engana a fome com café
termina de engolir
as humilhações de ontem da patroa
digere pra caberem as de hoje
e vai trabalhar

Maria,
que não é economista
nem tem o que economizar,
desce com cuidado as vielas
que ecoam a notícia:
balearam seu filho mais velho
limparam o sangue do local
e a vida seguiu

Soluça desconsolada Maria
seu filho agora é só estatística
seu choro
mero soluço estatístico

Limpa as lágrimas, Maria
é só mais um adeus aos seus
a vida segue
e nunca foi tão pacífica


Poema escrito para a oficina de poesia do projeto Tantas Letras, da prefeitura de São Bernardo do Campo (o blog do projeto com os nossos poemas está nos links aí ao lado!). A atividade era fazer um poema a partir de uma notícia de jornal. Escolhi duas, a primeira é essa parte em itálico e a outra está inserida no poema, do assassinato de um filho de Maria, dos que morrem todos dias, só limpam o sangue e a vida segue.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Poemas de otros

A primeira experiência em traduzir alguns dos poemas que gosto foi, claro, de Mario Benedetti, este poeta uruguaio que eu tanto admiro. O poema se chama "Soy un caso perdido" e é do livro Cotidianas, de 1979.


Sou um caso perdido
(Mario Benedetti)

Por fim um crítico sagaz revelou
(já sabia que iam descobrir)
que em meus contos sou parcial
e tangencialmente me exorta
a que assuma a neutralidade
como qualquer intelectual que se respeite

acho que tem razão
sou parcial
disto não cabe dúvida
eu diria ainda que um parcial irresgatável
caso perdido enfim
já que por mais esforços que faça
nunca poderei chegar a ser neutro

em vários países deste continente
especialistas destacados
fizeram o possível e o impossível
para curar-me da parcialidade
por exemplo na biblioteca nacional de meu país
ordenaram o expurgo parcial
dos meus livros parciais
na argentina me deram quarenta e oito horas
(senão me matavam) para que fosse embora
carregando minha parcialidade nos ombros
por último no peru incomunicaram minha parcialidade
e me deportaram

se tivesse sido neutro
não teria necessitado
essas terapias intensivas
mas que posso fazer
sou parcial
incurávelmente parcial
e ainda que possa soar um pouco estranho
totalmente
parcial

já sei
isso significa que não poderei aspirar
a tantíssimas honras e reputações
e preces e dignidades
que o mundo reserva aos intelectuais
que se respeitem
isto é aos neutros
com um agravante
como cada vez existem menos neutros
as distinções se repartem
entre pouquíssimos

depois de tudo e a partir
das minhas confessas limitações
devo reconhecer que por esses poucos neutros
tenho certa admiração
ou melhor reservo-lhes certo assombro
já que na realidade é preciso um temperamento de aço
para se manter neutro ante episódios como
girón
tlatelolco
trelew
pando
la moneda

é claro que uma pessoa
e talvez seja isso o que queria me dizer o crítico
poderia ser parcial na vida privada
e neutro nas belas letras
digamos indignar-se contra Pinochet
durante a insônia
e escrever contos diurnos
sobre a atlântida

não é má ideia
e claro
tem a vantagem
de que por um lado
teria conflitos de consciência
e isso sempre representa
um bom nutrimento para a arte
e por outro não deixaria espaço para sofrer ataques
da imprensa burguesa e/ou neutra

não é má ideia
mas
já me vejo descobrindo ou imaginando
no continente submerso
a existência de oprimidos e opressores
parciais e neutros
torturados e carrascos
ou seja a mesma confusão
cuba sim ianques não
dos continentes não submersos
de maneira que
como parece que não tenho remédio
e estou definitivamente perdido
para a frutífera neutralidade
o mais provável é que siga escrevendo
contos não neutros
e poemas e ensaios e canções e novelas
não neutras
mas advirto que será assim
ainda que não tratem de torturas e cárceres
ou outros tópicos que ao que parece
resultam insuportáveis aos neutros

será assim ainda que tratem de borboletas e nuvens
e duendes e peixinhos

**
Segue link para o poema original e um pouco mais sobre ele: http://donmariobenedetti.blogspot.com/2009/05/soy-un-caso-perdido.html

domingo, 23 de outubro de 2011

O poema inaugural..



(In)diferenciação
(Lucas Bronzatto)

Dois corpos companheiros:
um,
imundo
franzino
e despelado;
o outro,
imundo
franzino
e barbudo

Difícil diferenciar
quem era o animal

Quatro olhos pedintes,
expressão típica da fome
que nos dois doía

Só uma das duas súplicas
aperta no peito
e desaperta seu passo

Dói nela não ter o que oferecer

Põe-se a pensar soluções

E não tarda em imaginar
o cachorro abocanhando
partes do corpo do homem

Era indignante
a fome do animalzinho