sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Poemas de otros

A primeira experiência em traduzir alguns dos poemas que gosto foi, claro, de Mario Benedetti, este poeta uruguaio que eu tanto admiro. O poema se chama "Soy un caso perdido" e é do livro Cotidianas, de 1979.


Sou um caso perdido
(Mario Benedetti)

Por fim um crítico sagaz revelou
(já sabia que iam descobrir)
que em meus contos sou parcial
e tangencialmente me exorta
a que assuma a neutralidade
como qualquer intelectual que se respeite

acho que tem razão
sou parcial
disto não cabe dúvida
eu diria ainda que um parcial irresgatável
caso perdido enfim
já que por mais esforços que faça
nunca poderei chegar a ser neutro

em vários países deste continente
especialistas destacados
fizeram o possível e o impossível
para curar-me da parcialidade
por exemplo na biblioteca nacional de meu país
ordenaram o expurgo parcial
dos meus livros parciais
na argentina me deram quarenta e oito horas
(senão me matavam) para que fosse embora
carregando minha parcialidade nos ombros
por último no peru incomunicaram minha parcialidade
e me deportaram

se tivesse sido neutro
não teria necessitado
essas terapias intensivas
mas que posso fazer
sou parcial
incurávelmente parcial
e ainda que possa soar um pouco estranho
totalmente
parcial

já sei
isso significa que não poderei aspirar
a tantíssimas honras e reputações
e preces e dignidades
que o mundo reserva aos intelectuais
que se respeitem
isto é aos neutros
com um agravante
como cada vez existem menos neutros
as distinções se repartem
entre pouquíssimos

depois de tudo e a partir
das minhas confessas limitações
devo reconhecer que por esses poucos neutros
tenho certa admiração
ou melhor reservo-lhes certo assombro
já que na realidade é preciso um temperamento de aço
para se manter neutro ante episódios como
girón
tlatelolco
trelew
pando
la moneda

é claro que uma pessoa
e talvez seja isso o que queria me dizer o crítico
poderia ser parcial na vida privada
e neutro nas belas letras
digamos indignar-se contra Pinochet
durante a insônia
e escrever contos diurnos
sobre a atlântida

não é má ideia
e claro
tem a vantagem
de que por um lado
teria conflitos de consciência
e isso sempre representa
um bom nutrimento para a arte
e por outro não deixaria espaço para sofrer ataques
da imprensa burguesa e/ou neutra

não é má ideia
mas
já me vejo descobrindo ou imaginando
no continente submerso
a existência de oprimidos e opressores
parciais e neutros
torturados e carrascos
ou seja a mesma confusão
cuba sim ianques não
dos continentes não submersos
de maneira que
como parece que não tenho remédio
e estou definitivamente perdido
para a frutífera neutralidade
o mais provável é que siga escrevendo
contos não neutros
e poemas e ensaios e canções e novelas
não neutras
mas advirto que será assim
ainda que não tratem de torturas e cárceres
ou outros tópicos que ao que parece
resultam insuportáveis aos neutros

será assim ainda que tratem de borboletas e nuvens
e duendes e peixinhos

**
Segue link para o poema original e um pouco mais sobre ele: http://donmariobenedetti.blogspot.com/2009/05/soy-un-caso-perdido.html

domingo, 23 de outubro de 2011

O poema inaugural..



(In)diferenciação
(Lucas Bronzatto)

Dois corpos companheiros:
um,
imundo
franzino
e despelado;
o outro,
imundo
franzino
e barbudo

Difícil diferenciar
quem era o animal

Quatro olhos pedintes,
expressão típica da fome
que nos dois doía

Só uma das duas súplicas
aperta no peito
e desaperta seu passo

Dói nela não ter o que oferecer

Põe-se a pensar soluções

E não tarda em imaginar
o cachorro abocanhando
partes do corpo do homem

Era indignante
a fome do animalzinho

Um blog, cantos e facas

"Eu quero é que este canto torto feito faca corte a carne de vocês". Assim disse Belchior em sua famosa música À palo seco, o canto de alguém que se desesperava de olhos abertos enquanto os outros sonhavam. Mas não eram sonhos profundos, nem sonhos coletivos, eram só sonhos que vinham de um fechar de olhos para o mundo.
Cantos tortos que feito faca cortem a carne de quem lê, essa bela definição de poesia é a proposta desse blog que nasce ainda sem cara definida. Minha primeira ideia é publicar alguns poemas que escrevo, mas também compartilhar alguns cantos tortos latinoamericanos, traduzir alguns poemas e canções que não foram traduzidos para o português ou são pouco conhecidos no Brasil.
Divido aqui, em palavras, aquilo que corta a minha carne. Boas leituras!