sexta-feira, 29 de maio de 2015

Estandarte


Estandarte

Esses seus pés pequeninos
deveriam estar em todas as caminhadas
em todas as marchas
como se fosse um estandarte

seus dedos
pequenino
assim junto da terra
que tentam arrancar de seus pés
todos os dias
alçados num andor
bem no alto
em todas as ruas
em todas as praças

não conheço suas canções de ninar
menino
não sei se fazem você dormir com medo
como as da cidade
mas sei que pra você
dormindo ou acordado
o terror não é invenção
seu bicho papão é real
e papa terras de sua gente
a cuca é real
e quando papai vai pra roça
lutar pela terra que seus pezinhos pisam
a cuca mete bala
e ele pode não voltar
pra ninar você
quando mamãe vai em passeata
lutar por justiça na cidade
a cuca pega
a cuca bate
a cuca prende
e ela pode não voltar
pra ninar você

o chão que a cuca pode arrancar de você
curumim
eu sei
não é só a terra
que pisam
seus pés pequeninos
num estandarte
bem no alto
num andor
a dor escancarada
espalhada
também do alto
como nuvem
semeadura do capital
nos campos e florestas
chuva de veneno
sobre crianças como você
sobre culturas como a sua
arames farpados
em territórios ancestrais
terras pilhadas
cadáveres empilhados

se roubarem tanto assim de seu chão
e de sua infância
se você for forçado a vir pra cá
pras ocas de concreto
ocas
onde o retrocesso avança
criança
olhando assim esses seus pezinhos
seus chinelinhos
num pesadelo aparecem correndo
desviando
das balas que farejam melanina
dos cassetetes
da ameaça das celas
e também das ofensas
fósforos
lâminas
e braços
de caras-pálidas raivosos
embriagados de racismo
num pesadelo vejo
chinelinhos ensanguentados no asfalto
sem terra
sem pezinhos

sei que ensinam tudo isso pra você
menino
e que você cresce
sem medo de careta
vira guerreiro
boi da cara preta
pra entrar em toda treta
junto dos ancestrais

mas até você crescer
esses seus pés pequeninos
deveriam estar em todas as caminhadas
em todas as marchas
como se fosse um estandarte

(poema: Lucas Bronzatto / foto: "Sonhar menino em uma aldeia multiétnica", de Vinícius Santiago. Não era sobre o Vitor Pinto, mas o poema foi rasgado por novos versos depois que seus chinelinhos ficaram sem seus pezinhos e agora o dedicamos a ele.)

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Desafio das palavras!

Há pouco mais de um ano atrás eu criei um "desafio" na página Cantos Tortos, uma espécie de caça-palavras que quem encontrasse mais palavras no "diagrama' da capa do meu livro ganharia um livro de presente.As ganhadoras foram a Aline Moura e a Mariana Lisboa! Me autodesafiei tb, dizendo que ao final, faria um poema com todas as palavras encontradas. Caso clássico de que o feitiço vira contra o feiticeiro. 
Tanto tempo depois, aí vai o poema, usando apenas as palavras encontradas na sequência, contínuas (palavras encontradas ligando as letras, sem repetição de letras), usando além das 55 que a vencedora Aline achou, as que xs demais caçadorxs de palavras encontraram. 

--

Tonto nato
noto cor no roto
cato tons no tosco

canto o nó

asno sano
tostão não cato

nota?
na oca sã o caos não toca
o cão – totó – rosna ao asco

nota:
são a sós é ato tão sonso!
o são a sós
casto
no canto
não toca o nós
a sã a sós
no canto casto
não soca o tostão
não tosta as notas

nos sãos a sós o ocaso sonso
soa santo

o S.O.S. tá na troca
o S.O.S. tá no nós
roa o nó!

nota,
caso corto o torso
não castro a rosa
o canto anoto
no sótão
na costa
na roça
nas rocas
astro no rosto
cá, anoto
ano a ano
cano a cano
naco a naco
nó a nó

anoto
corsa rosca toscano castor tosa toso cós naso
o canto soa tão tosco
canto coto
soto-canto
canso

o torto coa o caô
saco tanto canto torto
anoto anoto anoto
corto corto corto
tasco o nós no só

Cantos Tortos à tona
taco nas ocas
nas rocas, nos atos
nos tantos cantos

trocas
trocas
trocas

tanto

a sós, não
a nós
 
--
A capa do livro:

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Panelas


Panelas

Na panela da janela
vazia de sentido
panela de pressão seletiva
capela de repressão
eu não bato não

Na panela que não apita
quando a fumaça sobe
pra professor em greve
que não chia
quando o cabo de borracha queima
as costas de estudantes nas ruas
eu não bato não
Na panela de olhos de aço
que aceita a balela dita na tela
que chama massacres de conflitos
panela que no fundo
vibra quando a polícia bate
eu não bato não

Na panela de cera que não vela o Eduardo de Jesus
clamando justiça
na panela que não desvela a ditadura na favela
na panela que não pergunta do Amarildo
eu não bato não
Ela ela ela
silêncio na janela
se o choro é da favela

Na panela anticorrupção
antiaderente pra tucanos
e pra empresário corruptor
eu não bato não
ainda mais nessa de tecnologia avançada
que deixa inoxidável o sorrisinho do chuchu
que não refoga
governador que revoga aumentos de salário
frita a educação pública
amassa quem discorda de seus desmandos
desidrata torneiras
escorre a água do macarrão
pro agronegócio
deixa assar a batata envenenada
calado
enquanto os da janela batem na panela de cobre
nobre
que encobre o cartel do metrô
cozinha escândalos em banho-maria
sem deixar ferver pro povo esquecer

Corrupção tucana parece aquela brincadeira:
vaca amarela cagou na panela
na grande mídia ninguém corre o risco
de comer toda a bosta dela

Na panela de barro que ferve direitos trabalhistas
eu bato pra estilhaçar
Na panela de teto de vidro
que enquanto bate
deixa descansando o ajuste fiscal
a terceirização
e outros ingredientes do mesmo caldo
eu não bato não
não bato panela nem palma pra patrão
muito menos se for passar na televisão
pois se alguém ainda não sabe
requento aquele refrão:
não vai ser televisionada a revolução
Na panela da panelinha de “gente de bem”
civilizada e pacífica
eu não bato não
Sou desses que leva panela pra rua
pra fazer baderna
e deixa um panelão pra lua
pra fazer de cisterna

(Lucas Bronzatto)