Tenho
Quando me vejo e toco
eu, João sem Nada ontem,
e hoje João com Tudo,
e hoje com tudo,
passo os olhos, olho,
me vejo e toco
e me pergunto como pôde ser.
Tenho, vamos ver,
tenho o prazer de andar por meu país,
dono de tudo que há nele,
olhando bem de perto o que antes
não tive nem podia ter.
Colheita posso dizer,
monte posso dizer,
cidade posso dizer
exército dizer,
já meus para sempre e teus, nossos ,
e um largo resplendor
de raio, estrela, flor.
Tenho, vamos ver,
tenho o prazer de ir
eu, camponês, operário, gente simples,
tenho o prazer de ir
(é um exemplo)
a um banco e falar com o administrador,
não em inglês,
não em senhor,
mas dizer-lhe companheiro como se diz em espanhol.
Tenho, vamos ver,
que sendo um negro
ninguém pode me deter
na porta de uma danceteria ou de um bar.
Ou então na recepção de um hotel
gritar-me que não há quarto,
um mínimo quarto e não um quarto colossal,
um pequeno quarto onde eu possa descansar.
Tenho, vamos ver,
que não há guarda rural
que me agarre e me prenda num quartel,
nem me arranque e me expulse da minha terra
no meio do caminho real.
Tenho que como tenho a terra tenho o mar,
não country
não railáif
não tenis não yacht,
mas de praia em praia e onda em onda,
gigante azul e aberto democrático:
enfim, o mar.
Tenho, vamos ver,
que já aprendi a ler,
a contar,
tenho que já aprendi a escrever
e a pensar
e a rir.
Tenho que já tenho
onde trabalhar
e ganhar
o que tenho que comer.
Tenho, vamos ver,
tenho o que tinha que ter.
(Nicolás Guillén, 1964)
tradução livre por Lucas Bronzatto
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Nicolas Guillén (1902-1989)
Poeta cubano, de vasta e bela obra, considerado o "Poeta Nacional" em seu país.
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