domingo, 30 de novembro de 2014

Para quando você for grande a ponto de entender

Para quando você for grande a ponto de entender
 Já vai ter passado um bom tempo, mas faço questão de que um dia você saiba que também esteve junto durante esta longa e bonita viagem que fiz. Por várias vezes eu olhava pra sua foto, aquela que levava de papel de parede no celular, de uma tarde na praça que você provavelmente não vai lembrar quando crescer ou que fará parte do monte de boas memórias fragmentadas da sua infância, que não terão ordem cronológica, mas que se misturarão e talvez deixarão minha imagem associada àquele tempo bom, possivelmente a mesma sensação que tenho com minhas tias e com as visitas a São Paulo. Uma tarde tão marcante pra mim, sair da frente da sua amada Discovery Kids e ir a uma praça, ao bom e velho Jardim Velho e te ver brincar na areia, bagunçar, fazer montinho, escorregar, encher o escorregador de areia, fazer anjinho no chão como nesta foto que eu levo comigo nessa viagem de tantas fotos que quando você for grande a ponto de entender eu vou querer passar várias tardes te mostrando e te contando histórias desses dias de mochila, talvez tomando cerveja, talvez vinho ou chimarrão, te contarei das mulheres que saíam às ruas no Natal na capital da Bolívia para entrar nas filas de caridade que os donos de comércios faziam pra aliviar suas consciências e tornar visíveis por alguns minutos as pessoas que durante todo o ano fingiam que não existiam e incontáveis vezes expulsavam-nas de seus comércios, do olhar das crianças indígenas na praça de Sucre segurando seus brinquedos simples ganhados de doação vendo passar a menina loirinha, com a bicicleta nova que sua mãe comprou e te contar das assustadoras estradas pelas quais passei, da insanidade dos motoristas de ônibus, dos momentos em que parecia que o freio não ia aguentar e um penhasco ia engolir todas as nossas futuras tardes na praça, todas as nossas brincadeiras na sala e contar da vida desgraçada dos mineiros que extraem prata e zinco em Potosí, onde também achei que ia cair em algum buraco faminto por gente e não voltar pra te contar estas histórias, e que este meu medinho besta nem se comparava ao que os mineiros sentiam nas profundezas da mina, dentro do inferno, não era nada perto das centenas de acidentes e das dezenas de mortes e contar que vi de perto coisas que você via na época em seus desenhos animados: desertos, vulcões, lava, cactos gigantes e do realismo mágico de nossa América, isto de um dia  estar na praia, no outro no deserto e no seguinte nas montanhas e logo depois na neve e que passei um réveillon numa festa no meio do deserto no Chile, que tocou muita música brasileira e te dizer, caso ainda não tiver descoberto, que nossos vizinhos dos outros países gostam muito de brasileiros, e que este culto às rixas entre nós existe pra enfraquecer a luta de nossos povos e que em uma das pousadas que fiquei na Bolívia os filhos do dono vieram cantar pra gente na janta e eram três: uma menina maiorzinha, um menino um pouco mais novo que ela e outro menor, que parecia ter uns 2 anos, que mais ria que cantava e lembrei imediatamente de vocês três, pequenos, das bandas que a gente montava na "casa da vovó", com um violão quebrado, uma pele de bumbo de bateria, um microfone que não funcionava nunca e um contrabaixo velho, da festa que a gente fazia e justamente quando eu sorria lembrando disso e de como era bom vocês poderem ter infância, uma das crianças interrompeu minha saudade pra me pedir dinheiro pela apresentação, com o mesmo olhar cortante que vi nas muitas crianças que pediam dinheiro na rua na Bolívia e te contar que tirei uma foto de um boneco de neve pra você, com nariz feito de pedra e não de cenoura, e que vi muitas cidades de pedra que te deixariam com mais "dó" ainda do que você ficou quando viu as fotos de Macchu Picchu pela internet, te dizer porque os índios foram e sempre serão tão importantes, explicar a diferença entre o termo índios e povos originários, falar da forma como eles organizavam suas sociedades e viviam em comunhão com a natureza, da técnica impressionantemente precisa de cortar as pedras que você vai ver nas fotos de Tiwanaku e assim te contar porque os poderosos fazem tanta questão de apagar dos livros e das memórias essas nossas raízes, porque inventam histórias sobre arquitetos alienígenas e falar da matança de povos originários que fizeram os espanhóis e portugueses de um jeito que sua escola não vai contar e te emprestar, se você quiser, As Veias Abertas da América Latina, este livro vivo que abriu minha cabeça, minhas veias e continua abrindo tantas veias e cabeças como a de outros jovens que encontrei nesta viagem e se caso você for estudante, te falar dos estudantes chilenos que conheci e da consciência e força que tinham, dos penguinos, das greves daquele ano, das grandes alamedas em seus olhos e de toda a história de lutas do movimento estudantil chileno, e também do movimento estudantil brasileiro, te contar que vi um presidente indígena falar para as nações de seu país colocando o dedo em algumas feridas que quase ninguém colocava, mas que teve gente que me disse que era mais discurso que prática e talvez nesse momento falar de Paulo Freire e do quão fundamental é diminuir a distância entre o que dizemos e o que fazemos e depois rir lembrando que nessa época você queria ser o Homem-Aranha, ou melhor, você era o Homem Aranha e te contar que eu também tinha (e com certeza terei ainda quando chegar este tempo de te contar) meus heróis e heroínas, que são mulheres e homens sem mutações, sem picadas de aranhas radioativas, nem roupas, nem cintos nem anéis especiais, mas com os superpoderes de pensar e agir coletivamente e dedicar a vida ou parte dela para fazer do mundo um lugar mais justo, heroínas e heróis que não usam capas nem capacetes, mas roupas simples, bandeiras, boinas, máscaras, lenços, saias, canetas, enxadas, violões, cabelos bagunçados, cada qual do seu jeito, todos do povo, todos odiados e combatidos pelas classes dominantes (os vilões da vida fora dos desenhos) e te revelar que o tipo de sonhos que este seu padrinho leva dentro dos sapatos às vezes faziam nascer asas nos meus pés e ao mesmo tempo que me afastavam, me aproximavam de você, porque ter esperança e amor sem preço durante a vida adulta é um jeito de se manter criança, manter alguma pureza e que talvez por isso você sempre se assustava quando eu falava o monte de anos a mais que você que eu tinha (e nessa hora vou tentar imitar a cara engraçada que você fazia), e se forem mesmo muitas tardes de conversa vou fazer questão de dizer o nome e descrever uma a uma quem foram as pessoas que me estimularam a ser desse jeito que muitos tolos dizem que não leva a lugar nenhum e que me levou a viajar da maneira bonita que viajei, e a me afastar, me aproximar, me afastar, me aproximar e explicar porque eu viajava tanto, morava fora, não estava sempre lá quando você queria e o que eu buscava quando mudava de cidade, quando viajava e o que eu encontrei e dizer o quanto é importante conhecer outros modos de vida, outros modos de ver o mundo, furar as bolhas, e te contar que durante essa viagem eu podia escolher morar em um lugar tão perto de você que poderia passar o dia do seu aniversário com você e não só a festa como nos últimos seis anos, mas eu escolhi ir para um lugar mais longe, o mais longe que eu já tinha ido pra morar até então e te explicar porque fiz esta escolha e como foi difícil e doído abrir mão de estar mais perto de vocês três, pequenos, e dessa enorme capacidade que vocês tinham de curar as dores que a vida adulta nos causava, e como me chateou diminuir o número de vezes que você ia dormir comigo na sua infância com seu pijama engraçado que brilhava no escuro assistindo desenho até cair no sono e também deixar de encontrar com frequência todas as pessoas que amo que estavam perto de você, nesse lugar que eu nasci e passei tanto tempo da minha vida, e que também por isso, cada vez que eu olhava sua foto aumentava mais a vontade de viver, voltar e te contar um dia que sua alegria daquela tarde no parque aumentava mais a minha esperança, minha força pra lutar, pra fazer minha parte pra que quando você for grande a ponto de entender isso tudo que eu vou te contar, que pelo menos algumas dessas coisas sejam coisas do passado. 

(Lucas Bronzatto)

- janeiro de 2013. texto concebido em uma das longas viagens de ônibus pela Bolívia, vendo da janela paisagens como esta. Ritmo de pensamento, sacolejos de viagem - 


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