terça-feira, 23 de setembro de 2014

Manifesto Esquina do Tempo

Recebi do meu grande amigo Gabriel Bordignon este manifesto poético, uma resenha de meu livro Cantos Tortos. Com muita honra, compartilho com vocês, seguido de um poema, também de autoria dele:

Cildo Meireles - Cantos

manifesto esquina do tempo
local no qual acontecimentos casuais se encontram em diferentes sentidos. a coincidência é irmã mais velha por parte de mãe do deja vu.
o título do livro cantos tortos de meu amigo lucas bronzatto me lembrou uma obra de cildo meireles chamada cantos, na qual o artista cria um "vão", um espaço, no encontro (canto) de duas paredes de uma sala. ao pensar sobre essas duas obras me lembrei de outra expressão: horizonte vertical, acho que é o título de um livro, não lembro, mas ela caberia bem nesses cantos. 
 isso por sua vez me lembrou um trecho de marçal aquino, acho que do livro eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, em que ele escreve algo mais ou menos assim de tentar extrair sonhos das frestas da realidade. acho que é por aí. 
 a origem da obra de cildo é a história de um sonho que ele teve uma vez quando criança. o artista estava na casa da avó e depois do almoço resolvera tirar um cochilo. ele conta que se deitou, mas depois quando tentou se levantar não conseguia se mexer. estava paralisado e não conseguia emitir nenhum som. mas conseguia enxergar e ouvir tudo. de repente ele percebeu num canto do quarto, na diagonal da cama, que começou a sair mãos com unhas ultra pintadas, depois o rosto de uma mulher e depois ela por inteira. veio sorrindo na direção dele. parecia velha e estava muito maquiada. ela andou na direção dele e parou nos pés da cama. começou a levitar e pareceu encostar os dedos dos pés nos do artista. ele conta que rezou todas as orações que conhecia, e quando rezava salve rainha a mulher lentamente se afastou, mas sempre sorrindo, e voltou para o canto. aí ele recuperou o controle do corpo.
 acho legal dessa obra cantos que ela cria um espaço num ambiente doméstico, como se fosse uma metáfora de quebrar a rotina. e voltando ao horizonte vertical, ao criar esse espaço é como se criasse uma possibilidade - inesperada, porque foge da norma, não se vê muitas paredes assim - e o horizonte como símbolo da utopia, aquilo a ser alcançado. como diz eduardo galeano o horizonte como a utopia é inalcançável mas sempre podemos buscá-los, aquilo da importância estar na caminhada, no caminho, no meio (de duas paredes no caso rs mas não só, no meio dessas coincidências que foi o lançamento do livro do meu amigo, chamado cantos tortos que por sua vez é inspirado numa canção do belchior "eu quero é que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês", eu ter estudado o cildo e me lembrar dessa obra, a gente ter escrito com mais dois amigos um poema chamado esquina do tempo etc)
 e a poesia entre muitas outras coisas é também isso de criar novas possibilidades para o uso doméstico das palavras. criar umas fendas na realidade pra gente extrair uns sonhos. criar uma brecha no discurso conservador, criar um buraco pra flor nascer do asfalto, facilitar um pouco né... criar um suspiro na respiração da mocinha, ou do mocinho, ou do homem ou da mulher que sofre... criar para conquistar, não no sentido imperialista... entende, amigo? Por que se você me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi: amigo, eu me desesperava. e temos que gritar desesperadamente, antes que roubem nossa voz.         

poema em homenagem ao livro "cantos tortos": 



Existem alguns cantos onde o tempo se acumula

quem já esteve num metrô vai entender melhor o que quero dizer
ao descer as escadas e seguir para o embarque
ao longo da plataforma há alguns recuos
aqueles lugares onde alguns preferem aguardar o trem
- em vez de esperar com os pés na fita de segurança... -
o que eu queria dizer é que nesses cantos
com o vai e vem dos passageiros
um pouco de tempo acaba se acumulando
alguns minutos de alguém que passa correndo atrasado
sempre acaba se desprendendo e indo parar ali
também nos horários de pico quando a multidão se acotovela
o atrito dos corpos desprende um pouco de tempo
- que depois o pessoal da limpeza acaba varrendo sem querer
para esses cantos
ou mesmo se essa poeira de tempo cair nos trilhos
o rápido passar dos trens vai levantá-la e levá-la
a esses cantos, ou seja, é uma questão de tempo para esses minutos e segundos
- e há até relatos de quem já encontrou horas e dias inteiros –
irem parar (temporariamente) nesses cantos
mas esses não são os únicos refúgios de tempos desabrigados
eles também se acumulam nas dobras do sofá da sala
(de televisão, de espera)
nas juntas das pedras das calçadas, no meio fio
debaixo do banco das praças
nas guimbas, nas cinzas - há um restinho de tempo 
- as escadas rolantes dos shoppings, dizem, são lubrificadas com esse tempo
Que escorre e às vezes até prendem o cadarço na ânsia por mais tempo
- às vezes, dizem outros, caem uns respingos desse tempo nas sacolas de compra,
responsáveis pela momentânea satisfação nelas encontradas. 
o que eu queria dizer é que esses cantos funcionam como trincheiras
sacos de areia de ampulhetas quebradas que protegem contra a pressa diária
há vários tipos desses cantos, um deles é conhecido por cantos tortos
onde o tempo acumulado ricocheteia como uma bolinha de pinball
entre numa espiral, num torvelinho tipo desenho animado
e é atirado de volta ao fluxo dos passantes em outro estado físico
cristalizados em flecha que podem atingir o peito de quem passa
fazendo-o deter-se momentaneamente para talvez lembrar de algo esquecido
ou atingem de esgueio suas idéias mudando o rumo de seus pensamentos 
era mais ou menos isso que eu queria dizer pra vocês 
("...Este caminhar nos lembra não só a atenção distraída dos surrealistas, mas, também, singularmente, a noção freudiana de atenção flutuante, indícios de que pensamento e escrita também se desdobram à escuta do inconsciente. Caminhar, enfim, que é o da criança, particularmente da criança da 'Berliner Kindheit', parada na janela, esperando escondida atrás de um móvel, atrasada quando vai à escola ou à sinagoga, retirada nos cantos afastados do jardim público, enfim sempre hesitante 'nestes limiares' onde, como o diz com excelência Anna Stussi, 'o tempo se acumula'." Jeanne Marie Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin)

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Conheça os belos poemas e desenhos do Gabriel em http://cafeteiraitaliana.blogspot.com.br/
Grato, meu caro!

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