terça-feira, 31 de julho de 2012

Viuvez

Viuvez
(Lucas Bronzatto)

Caminhava trôpego em meio às palavras pronunciadas
ora desviava ora encarava ora me distraía
O céu é sempre cinza em dias de despedida
nunca tem lua
Tropeço trapaça ou trampolim?
Um trapo no lugar da cara
um trato um trator um transtorno
leve
talvez moderado
sempre ponderado não ponderava mais
não pontuava mais
não podia mais
latejava dentro da cabeça
pesava quando pensava
não amansava, amassava
a eterna dificuldade de lidar com o luto
Escuto a lágrima solitária
que percorre escorre e seca
sem mais luta, aceito
visto o véu de viúvo de mim mesmo
de outro eu que se vai
É sempre mais difícil pra quem fica

--

Um poema às pequenas mortes de cada um de nós, inspirado (talvez de forma incosciente) na excelente história em quadrinhos Daytripper, de Fábio Moon e Gabriel Bá.



http://hotsitepanini.com.br/vertigo/series/daytripper/

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Rua Alfredo Thieres Vieira, nº

Rua Alfredo Thieres Vieira, nº

Janelas eram portas para as almas
Calçadas eram bancos de dividir e ver passar a vida
Postes iluminavam os olhos
que seguiam as moças de caderno na mão
Garagens tinham sofás no lugar de carros
Quartos eram universos particulares coletivos
Salas eram estúdios de ensaio, salões de festa, divãs
Banheiros eram lugares de soltar a voz e os vômitos
Árvores não havia, apenas raízes
dessas que a gente cria e carrega
Não havia muros na rua Alfredo Thiers Vieira
Na verdade tinha um, incapaz de conter qualquer coisa
Era muita vida pra uma rua só
Uma rua de vida própria
trilha sonora própria
Uma rua, tantos mundos

Portas viviam destrancadas
ou tinham assobios como chaves
Cabos solidários de fibra ótica
emaranhavam ainda mais as vidas
Nas varandas as varandas vizinhas
eram o horizonte mais bonito
No ar o cheiro da gororoba inventada
era pretexto de cerveja
O tráfego maior era de entregadores de bebidas, pizzas,
lanches e Caros Amigos
O asfalto era palco de festas
que ainda acontecem em nós, sem hora pra acabar
Ali muitos de nós sonhávamos de punho erguido
Assim como criança aprende a brincar de verdade na rua
é na rua que estudante aprende a lutar de verdade

Morar na Alfredo Thiers ou Thieres, como quiseres,
(afinal, nem os Correios sabem ao certo)
é o mais perto de brincar na rua que um adulto pode chegar
sem mãe chamando pra dentro pra jantar
Mas um dia é a vida que vem e nos chama
Berra
- Sai da rua menino vai já garantir seu jantar
E a gente vai
mas leva a rua no bolso
Cria um monte de esquinas no nosso caminho
pra dobrar quando quiser


A Alfredo Thiers Vieira faz esquina com o tempo

(Lucas Bronzatto)

domingo, 1 de julho de 2012

Prisões

Prisões
(Lucas Bronzatto)
Está tudo aqui e aí dentro
embora a gente talvez não perceba
Correntes correm junto aos nervos
que fazem mover nossa boca
São amarras armadilhas imperceptíveis
prontas para dificultar a passagem
das palavras que partem das vísceras
Vítimas, estas fogem pra pele
ou morrem sufocadas na laringe

Tudo aqui e aí dentro
muralhas que a gente cultiva como jardins
mortalhas que a gente tece como artesãos
tralhas e mais tralhas guardadas sem porque
navalhas que a gente deixa enferrujar

Está tudo aí e aqui dentro
embora a gente talvez não sinta
essa mão enorme e invisível
estrangulando nosso coração
quer imitar o amor
limitar o amor
eliminar o amor pouco a pouco
até deixar um oco 
um eco 
um boneco

Tudo aí e aqui dentro
Grades de luzes coloridas
aprisionam nossos pensamentos mais nossos
nossa vontade de ser quem a gente é
As coisas compradas no sábado
viram cadeados cordas e celas
que prendem e impedem as pulgas
de irem até a parte de trás das orelhas

Felizmente
pra gente se libertar
está quase tudo aqui
quase tudo aí dentro também
embora a gente talvez não saiba:
planos de fuga
táticas de guerra
facas de serra
limas alicates
britadeiras bandeiras
e até dinamites
Quase tudo aqui e aí dentro
o que falta aqui está aí
ou naquele prisioneiro ali
ou no outro
no outro
e vice-versa vice-versa vice-versa
vice-versa