(Para ler em um fôlego só)
Quitéria
(Lucas Bronzatto)
Quitéria
chora pela belezura que não está mais
no
rosto no espelho que não olhava há 28 anos
aprisionada
abandonada mutilada impregnada de haldol
de
desprezo de desgosto chora
quando
lembra que era apaixonada por quem era
nem
lembra quem era nem o que é paixão
no
chão grita se desespera espera por uma vida nova
nem
lembra o que é vida o que é sábado
não
sabe de onde veio essa velha o que é vela
o
que é aniversário onde revela o velho negativo de seu rosto
apagado
da memória da família onde nunca coube
Quitéria
chora e agora a hora é de recomeçar
Cavocar
no que restou da Quitéria que não tem belezura
no
rosto no espelho só tem as marcas cicatrizes
olheiras
e sulcos facetas da injustiça
que
o capitalismo cravou pra sempre na sua face
usando
mãos que fazem de letras ilegíveis lucros
lobbies
e livraimes desses males o mais rápido possível
apagando
pouco a pouco o muito que há dentro
de
quitérias joaquins beneditas severinos siclanos beltranos
fulanos
fumando bebendo gritando chorando sofrendo
usando
roupas coloridas demais coloridas de menos
tirando
a roupa no meio da rua se indignando
amando
demais amando de menos
calando-se
todos.
calabocas
injetáveis
calabocas
comprimidos
calabocas
em gotas
com
gosto de tutti-frutti
--
Esse poema é inspirado em uma das histórias de usuários dos serviços de saúde mental, que aconteceu em São Bernardo do Campo - SP, município onde trabalho. Eu não vivi, mas me contaram e eu tentei expressar o que me cortou a carne em um poema.
Quitéria (nome fictício) morou por muitos anos no hospital psiquiátrico existente na região. Foi retirada de lá para morar em uma Residência Terapêutica, um serviço substitivo ao hospital psiquiátrico, uma casa onde mora com outros portadores de transtornos mentais, parte deles ex-moradores de hospitais psiquiátricos. Momentos depois de chegar na casa em que ia morar, Quitéria desabou em lágrimas, chorava e gritava desesperadamente. Gritava que queria de volta sua belezura, que tinha perdido sua belezura. Como em quase todas as casas, diferente das prisões e hospitais psiquiátricos, lá tinha um espelho e Quitéria se olhou no espelho depois de quase 30 anos e não se viu mais. Seu rosto mudou e sua belezura se foi depois de tantos anos de prisão.
Quitéria é só uma das muitas e muitos que perderam sua identidade nos hospitais psiquiátricos de nosso país e de tantos outros países. Há muita gente disposta a lidar com a saúde mental de outra forma, sem exclusão, é longa a trajetória da Luta Antimanicomial no Brasil e no Mundo, e também já há um tempo existe a Lei da Reforma Psiquiátrica, que vem para reorientar a atenção dada a estes usuários, regulamentado a criação de novos serviços como a Residência Terapêutica, os CAPS, Centros de Convivência (uma busca no google e você acha!). São Bernardo tem avançado bastante na implantação desta lei, tirando quitérias, joaquins, beneditos, severinos de suas prisões e reinserindo na sociedade. É bastante possível.
Afinal, como dizem, de perto ninguém é normal...Obs: O desenho, feito pela grande amiga e artista Camila Avarca, é só um começo de algo que está por vir..
Tenho orgulho de ti, companheiro!
ResponderExcluirEm parte é orgulho de si tb, isso que tá aqui tem várias partes de vocês que eu fui pegando e incorporando..
ResponderExcluirGrato, companheiro!
Que história foda! Na minha sala de aula de E.J.A. (Educação de Jovens e Adultos) tem uma "Velha e Louca", dá um trabalhão ensiná-la... Estamos no comecinho da leitura/escrita (e isso já tem mais de um ano). Já ouvi de muita gente que o ideal seria ela não frequentar mais a escola ou então ser internada... Eu finjo que não escuto e ela continua aqui comigo. Se eu tenho dificuldades em ensiná-la, por outro lado aproveito para aprender bastante :)
ResponderExcluirBravo!!!
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