Recebi do meu grande amigo Gabriel Bordignon este manifesto poético, uma resenha de meu livro Cantos Tortos. Com muita honra, compartilho com vocês, seguido de um poema, também de autoria dele:
Cildo Meireles - Cantos
manifesto esquina do tempo
local no qual acontecimentos
casuais se encontram em diferentes sentidos. a coincidência é irmã
mais velha por parte de mãe do deja vu.
o título do livro cantos
tortos de meu amigo lucas bronzatto me lembrou uma obra de cildo
meireles chamada cantos, na qual o artista cria um "vão",
um espaço, no encontro (canto) de duas paredes de uma sala. ao
pensar sobre essas duas obras me lembrei de outra expressão:
horizonte vertical, acho que é o título de um livro, não lembro,
mas ela caberia bem nesses cantos.
isso por sua vez me
lembrou um trecho de marçal aquino, acho que do livro eu
receberia as piores notícias de seus lindos lábios, em que ele
escreve algo mais ou menos assim de tentar extrair sonhos das frestas
da realidade. acho que é por aí.
a origem da obra de
cildo é a história de um sonho que ele teve uma vez quando criança.
o artista estava na casa da avó e depois do almoço resolvera tirar
um cochilo. ele conta que se deitou, mas depois quando tentou se
levantar não conseguia se mexer. estava paralisado e não conseguia
emitir nenhum som. mas conseguia enxergar e ouvir tudo. de repente
ele percebeu num canto do quarto, na diagonal da cama, que começou a
sair mãos com unhas ultra pintadas, depois o rosto de uma mulher e
depois ela por inteira. veio sorrindo na direção dele. parecia
velha e estava muito maquiada. ela andou na direção dele e parou
nos pés da cama. começou a levitar e pareceu encostar os dedos dos
pés nos do artista. ele conta que rezou todas as orações que
conhecia, e quando rezava salve rainha a mulher lentamente se
afastou, mas sempre sorrindo, e voltou para o canto. aí ele
recuperou o controle do corpo.
acho legal dessa obra
cantos que ela cria um espaço num ambiente doméstico, como
se fosse uma metáfora de quebrar a rotina. e voltando ao horizonte
vertical, ao criar esse espaço é como se criasse uma possibilidade
- inesperada, porque foge da norma, não se vê muitas paredes assim
- e o horizonte como símbolo da utopia, aquilo a ser alcançado.
como diz eduardo galeano o horizonte como a utopia é inalcançável
mas sempre podemos buscá-los, aquilo da importância estar na
caminhada, no caminho, no meio (de duas paredes no caso rs mas não
só, no meio dessas coincidências que foi o lançamento do livro do
meu amigo, chamado cantos tortos que por sua vez é inspirado numa
canção do belchior "eu quero é que esse canto torto feito
faca corte a carne de vocês", eu ter estudado o cildo e me
lembrar dessa obra, a gente ter escrito com mais dois amigos um poema
chamado esquina do tempo etc)
e a poesia entre muitas
outras coisas é também isso de criar novas possibilidades para o
uso doméstico das palavras. criar umas fendas na realidade pra gente
extrair uns sonhos. criar uma brecha no discurso conservador, criar
um buraco pra flor nascer do asfalto, facilitar um pouco né... criar
um suspiro na respiração da mocinha, ou do mocinho, ou do homem ou
da mulher que sofre... criar para conquistar, não no sentido
imperialista... entende, amigo? Por que se você me perguntar por
onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi:
amigo, eu me desesperava. e temos que gritar desesperadamente, antes
que roubem nossa voz.
cantos
poema em homenagem ao livro "cantos tortos":
Existem
alguns cantos onde o tempo se acumula
quem
já esteve num metrô vai entender melhor o que quero dizer
ao
descer as escadas e seguir para o embarque
ao
longo da plataforma há alguns recuos
aqueles
lugares onde alguns preferem aguardar o trem
- em
vez de esperar com os pés na fita de segurança... -
o
que eu queria dizer é que nesses cantos
com
o vai e vem dos passageiros
um
pouco de tempo acaba se acumulando
alguns
minutos de alguém que passa correndo atrasado
sempre
acaba se desprendendo e indo parar ali
também
nos horários de pico quando a multidão se acotovela
o
atrito dos corpos desprende um pouco de tempo
- que
depois o pessoal da limpeza acaba varrendo sem querer
para
esses cantos
ou
mesmo se essa poeira de tempo cair nos trilhos
o
rápido passar dos trens vai levantá-la e levá-la
a
esses cantos, ou seja, é uma questão de tempo para esses minutos e segundos
-
e há até relatos de quem já encontrou horas e dias inteiros –
irem
parar (temporariamente) nesses cantos
mas
esses não são os únicos refúgios de tempos desabrigados
eles
também se acumulam nas dobras do sofá da sala
(de
televisão, de espera)
nas
juntas das pedras das calçadas, no meio fio
debaixo
do banco das praças
nas
guimbas, nas cinzas - há um restinho de tempo
-
as escadas rolantes dos shoppings, dizem, são lubrificadas com esse tempo
Que
escorre e às vezes até prendem o cadarço na ânsia por mais tempo
-
às vezes, dizem outros, caem uns respingos desse tempo nas sacolas de
compra,
responsáveis pela momentânea satisfação nelas encontradas.
o
que eu queria dizer é que esses cantos funcionam como trincheiras
sacos
de areia de ampulhetas quebradas que protegem contra a pressa diária
há
vários tipos desses cantos, um deles é conhecido por cantos tortos
onde
o tempo acumulado ricocheteia como uma bolinha de pinball
entre
numa espiral, num torvelinho tipo desenho animado
e
é atirado de volta ao fluxo dos passantes em outro estado físico
cristalizados
em flecha que podem atingir o peito de quem passa
fazendo-o
deter-se momentaneamente para talvez lembrar de algo esquecido
ou
atingem de esgueio suas idéias mudando o rumo de seus pensamentos
era mais ou menos isso que eu queria dizer pra vocês
("...Este
caminhar nos lembra não só a atenção distraída dos surrealistas, mas,
também, singularmente, a noção freudiana de atenção flutuante, indícios
de que pensamento e escrita também se desdobram à escuta do
inconsciente. Caminhar, enfim, que é o da criança, particularmente da
criança da 'Berliner Kindheit', parada na janela, esperando escondida
atrás de um móvel, atrasada quando vai à escola ou à sinagoga, retirada
nos cantos afastados do jardim público, enfim sempre hesitante 'nestes
limiares' onde, como o diz com excelência Anna Stussi, 'o tempo se
acumula'." Jeanne Marie Gagnebin, História e Narração em Walter
Benjamin)
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Conheça os belos poemas e desenhos do Gabriel em http://cafeteiraitaliana.blogspot.com.br/
Grato, meu caro!