Conheci Juanita em uma tarde
de terça-feira na Praça de Armas de Arequipa. Sentado, pensando na vida nem
percebi ela se aproximando e fui surpreendido com a pergunta “posso sentar
aqui, señor?” E eu, que geralmente
quando viajo sento nas praças justamente pra esperar que alguém sente pra
conversar, aceitei. Faz um tempo que me dei conta de que a melhor maneira de se
conhecer um lugar é conversando com as pessoas na rua.
Ela se sentou e reparei que
vestia algo parecido com um trapo, muito antigo, no qual ainda era possível
distinguir as cores vermelha e branca. Tinha o cabelo meio bagunçado, bem fino
e um rosto diferente dos que tinha visto até então na viagem. Parecia nova, 20
e poucos anos. Suspirou e disse que estava cansada, que tinha trabalhado muito.
Trazia um aguayo*, mas estava fechado e não pude ver o que levava. Depois de nos
apresentarmos e conversarmos sobre o clima e essas coisas que se conversa com
desconhecidos ela me perguntou, em um espanhol meio embolado e difícil de
compreender:
- O que você
sabe sobre os Incas, señor?
E eu que
estava há poucos dias no Peru, respondi que quase nada, mas que me interessava
muito pela história dos Incas.
- Então você
tem sorte, señor, porque eu sou uma
Inca.
-
Descendente dos Incas, você diz? - Perguntei em meu espanhol embolado com o
indisfarçável sotaque brasileiro.
- Não, sou
do Império Inca. Uma remanescente. Eu sei que você não vai acreditar em mim,
mas de corpo eu tenho 575 anos de idade. Quando tinha 13 anos eu fui
sacrificada (é assim que vocês dizem, né?) no cume do vulcão Ampato, aqui por
perto. Meu povo acreditava que os vulcões eram deuses e para eles fazíamos
rituais com oferendas humanas, geralmente de jovens como eu era. Como lá no
alto faz muito, muito frio, todas as oferendas se congelavam e assim durariam
para sempre. Meu corpo ficou congelado lá por mais de 500 anos até que um dia
um cientista do seu tempo me encontrou, há uns 20 anos, me descongelou e eu
tive que voltar a viver neste corpo. Você não acredita no que te digo né? Eu entendo,
quase ninguém acredita.
E eu, depois
de tantas coisas mágicas já vividas nessa viagem, respondi que acreditava. Acho
que fui convincente porque ela continuou com as histórias.
- Vê este
tecido da minha roupa? Tem mais de 500 anos também. Vermelho e branco são as
cores da nobreza Inca. Minha família era nobre, muito importante para nossa
sociedade. Eu bem que queria usar uma roupa dessas que se veste hoje, mas não
posso. Tenho que usar essa, em sinal de respeito. Com ela morri, com ela voltei
a viver. Sabe, nós acreditamos que vamos e voltamos sempre, que a morte é só
uma etapa. Quem era ofertado aos deuses sabia que logo ia voltar, por isso a
gente ia embora na mesma posição que a gente fica na barriga de nossas mães pra
renascer em outra vida desse mesmo jeito. Foram muitas vidas de lá pra cá, señor, mas não me lembro de nenhuma
delas. Não era pra eu voltar pra este corpo, ninguém volta para o mesmo corpo.
Mas hoje a ciência é capaz de coisas que alteram o curso natural da vida e da morte e
provavelmente eu devo ter morrido subitamente na minha vida anterior a esta pra
poder voltar pra este corpo. Deve ter dado uma boa discussão entre os deuses
pra decidirem se eu voltava ou não. O que sei é que voltei com a memória da
minha vida antes de ser sacrificada, de um tempo em que tudo era muito
diferente, muito diferente. Mesmo congelada por tanto tempo, eu sei de muitas
coisas, señor, muitas. Conversando
com as pessoas depois que voltei descobri que muitas coisas tristes aconteceram
com meu povo e com este país que hoje se chama Peru. Você é de que país?
- Do Brasil.
- Ah,
Brasil. Todo mundo diz que seu país é muito bonito. E parecem ser um povo bom,
que recebe bem e trata bem as pessoas. Os peruanos gostam muito dos
brasileiros. Você não é o primeiro brasileiro que me escuta sem achar que sou
louca, pelo menos parece que você não acha que eu sou louca. E por quais
cidades você passou antes de chegar aqui?
- Vim da
Bolívia, passei por Santa Cruz de la Sierra, Sucre, Potosí e Uyuni. De lá fui
para o Chile, San Pedro de Atacama e Arica e depois cruzei para o Peru, para
Tacna. De lá vim pra cá, cheguei ontem de manhã.
-
Potosí...Potosí...Quanta tristeza me dá ouvir ao nome desta cidade. Você foi
nas minas? Sim? Todos dizem que é impressionante. Eu nunca fui, porque não
tenho dinheiro pra viajar, mas eu sei de parte desta história, quer ouvir?
- Claro - E
tanto pela barreira de idioma, quanto pela perplexidade diante da situação de
conversar com uma múmia que voltou à vida, me dediquei mais a ouvir Juanita do
que a falar.
- Você viu
que lá as pessoas mascam coca o tempo todo né? Te conto que não era assim, não
era assim antes dos espanhóis chegarem. A coca é nossa folha sagrada, sempre
foi. No meu tempo as pessoas também mascavam, mas veja, nunca usamos a coca
para enganar a fome, pra substituir alimento. Quando os conquistadores
perceberam que mascar coca fazia os índios (não gosto de chamar meus irmãos
assim, mas é mais fácil pra você entender) aguentarem mais o esforço físico do
trabalho mineiro e diminuía a fome, eles autorizaram o uso da coca que antes tinham
proibido e estimularam os índios a mascarem coca o tempo todo. Também foram
eles que forçaram esses índios mineiros a criarem o hábito de tomar álcool puro
durante trabalho, para ajudar a não sentir fome, como você deve ter visto lá.
Tudo isso por ambição, pelo monte de prata que tinha no Cerro Rico. Ouvi que
daria pra fazer uma ponte de prata entre Potosí e Madri com a quantidade de
metal que saiu de lá para a Espanha. Isso é o que dizem, señor. Também me contaram que até pouco tempo atrás beber álcool
puro era muito comum aqui nos Andes fora das minas, em qualquer lugar. Muita
gente se viciou e pra quem bebe álcool puro, pisco, cerveja, qualquer outra
bebida não faz mais efeito. É um horror.
Os espanhóis mataram muitos de nós logo que chegaram e quando nos
inculcaram estes hábitos continuaram matando ao longo dos séculos. E de muitas
outras formas nos mataram, señor.
Muitas. Conhece essa parte da história, os massacres que sofreu meu povo?
- Faço
ideia, mas me conte por favor.
- Ah, foi
tudo tão triste, señor, tão triste.
Os espanhóis chegaram aqui e viram tanto ouro, tanta prata, tanta beleza que
quiseram tudo pra eles. Tínhamos nossos guerreiros, nosso exército, mas as
armas deles eram muito superiores. E também nos trouxeram muitas doenças que a
gente não sabia curar, isso também foi um massacre. Mas tivemos líderes muito
valentes. Já ouviu falar de Túpac Amaru? Dos dois? Não? Pois é, houve um
segundo Túpac Amaru. O primeiro foi degolado e as pessoas passaram a acreditar
que um dia a cabeça se juntaria de novo ao corpo para libertar meu povo da
exploração espanhola. E dois séculos depois outro valente guerreiro adotou o
nome de Túpac Amaru e encabeçou uma enorme rebelião indígena. Muitos acharam
que a cabeça tinha se juntado ao corpo, como na profecia. Mas a rebelião não
conseguiu libertar meu povo. Muita gente morreu, Túpac Amaru II foi preso e
condenado a morrer esquartejado, acredita, señor?
Esquartejado! Amarraram seu corpo a quatro cavalos para que saíssem em
disparada e assim dividir o corpo dele em quatro partes, mas ele não se partiu.
Foi preciso uma machadada na cabeça para que nosso guerreiro caísse. Nossos
deuses eram fortes, mas não tão fortes quanto a sede por riqueza dos conquistadores.
Você ouviu falar das pontes de palha que a gente fazia? Eram impressionantes!
Eu acho que foram os deuses que ensinaram nossos cientistas a construí-las,
acho que eles já sabiam que um dia viriam os espanhóis. Quilômetros e
quilômetros de pontes resistentes, feitas de palha, tiradas da natureza,
ligando uma cidade a outra. Quando meu povo viu que a derrota era inevitável,
muitas dessas pontes foram queimadas e como eram palha, queimaram rapidamente,
deixando muitos lugares inacessíveis. Talvez alguns estejam escondidos até
hoje. Quem sabe? Você ainda não foi pra Cusco, né?
- Não, ainda
não. É minha próxima parada.
- Repare na
quantidade de igrejas católicas em Cusco. Repare que ao lado de algumas delas
estão Templos Incas. Não é coincidência. Os espanhóis construíram Igrejas
imponentes ao lado, em cima ou no lugar de templos e outros símbolos de nossas
crenças. Isso para nos obrigar a ter sua religião, sua cultura. Para nossa
sorte, eles não chegaram a encontrar Machu Picchu enquanto o Peru pertencia à
Espanha. Se tivessem encontrado, ali seria a maior igreja católica do mundo,
com certeza. Ao lado ou no lugar de Machu Picchu. Imagina, señor! Resistimos o quanto foi possível, mas este possível foi
pouco. Lá em Cusco você vai ver, ainda restaram alguns templos. Vai ver também
um rei Inca bem no meio da Praça de Armas, é muito bonito. Sabia, señor, que na verdade Inca era o nome
dos reis? Com o tempo é que passaram a nos chamar também de Incas. Não são
todas as pessoas que falam minha língua hoje, é uma pena. O mesmo sangue que
corre nas minhas veias corre na maioria dos habitantes desse país, mas nem
todos sabem nossa língua original, a dominação foi grande. Eu tive que aprender
espanhol pra sobreviver, pra trabalhar. Mas você vai ver como Cusco é bonito.
Vai subir até Machu Picchu?
- Sim, vou
fazer a trilha Salkantay, você conhece? Não sei se aguento, mas vou subir.
- Sim,
conheço, señor. Salkantay é uma
montanha sagrada pra nós. Vocês de hoje, se me permite a brincadeira, são uns frouxos comparados às pessoas do tempo
que eu nasci. Ouço muita gente dizer que quase morreu no Caminho Inca, quase
morreu no caminho Salkantay, acho graça. A gente fazia esses caminhos sempre,
eram como as estradas de vocês hoje, parte de nossa rotina. A última vez que eu
fiz o caminho até Cusco foi antes de ir para o vulcão Ampato. Fui até lá a pé e
voltei, era parte do ritual. Sem quase morrer, como dizem vocês. E tinha gente que fazia correndo parte desses
caminhos que vocês fazem hoje. Eram os mensageiros, que levavam mensagens de
uma cidade a outra sem sentir falta de ar em momento algum. Acho engraçado vocês
serem assim frouxos. Sabe, señor,
falando sobre vocês, ouço hoje muita gente dizer “que horror, os Incas
sacrificavam gente”, “como eram atrasados! precisavam mesmo ser civilizados
pelos espanhóis”.
- É, eu
também já ouvi isso por aqui. As pessoas hoje dizem muita besteira, dona
Juanita.
- Eu
sinceramente não entendo porque as pessoas do seu tempo se indignam com
sacrifício humano. Pelo que vejo e ouço, vocês também sacrificam muita gente em
nome de seus deuses.
- Deuses?
- Sim,
deuses. Pra mim vocês têm vários deuses, que as pessoas adoram. Têm seus
símbolos também, de cada um desses deuses, como é que vocês chamam isso mesmo?
Logomarcas, não é? Essas coisas me parecem mais importante pra vocês que
qualquer deus. As pessoas veneram produtos e em nome deles muita gente é
sacrificada todos os dias. Eu nunca sai daqui, mas sei que aqui e em outros
países muitas pessoas trabalham de um jeito que é como uma morte diária, pouco
a pouco nas fábricas destas, como é? multinacionais. Sacrifícios humanos sem
nenhum ritual, sem nenhum sentido. A diferença é que no meu tempo, os nobres
também eram oferecidos aos deuses, essa era nossa crença. Hoje eu vejo que são oferecidos
só os mais pobres, os trabalhadores, os que nem tem trabalho. Isso é ser
civilizado? Sinceramente, não entendo, señor,
não entendo vocês.
- É, eu
também não.
- Señor, tenho que ir, já descansei
bastante, tenho que voltar a trabalhar - me disse enquanto abria seu aguayo -
não quer comprar um gorro feito de lã de lhama? Tenho luvas também, meias... me
ajuda, señor, compre algo.
- Estão
bonitos, você quem faz?
- Não, señor, eu compro de uma empresa que
compra dos artesões da cidade e revendo. Foi o que consegui encontrar de
trabalho depois que me descongelaram. É assim. Leva uma? Gracias, gracias, amigo. Cuidate.
Comprei uma
luva mesmo sem precisar, agradeci a Juanita pela companhia e ela partiu carregando
seu pesado aguayo. Desapareceu nas ruas me deixando com um nó apertado na
garganta.
* aguayo - tecido
confeccionado a mão na região dos Andes, muito usado pelas mulheres para
transportar seus bebês e todas as coisas que levam quando andam longas distâncias.
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